domingo, 29 de julho de 2007

UNO

O MELHOR

Melhor de tudo é viver
o perene,
pois o que é
subitamente renasce
e nos devolve
o que pensamos
perdido.

O que não é
e se pensou eterno,
passa e sequer deixa
marcas.

28/08/2002 – 10h38


A FACE INVISÍVEL

Somente
à noite percebo
o traço do dia
que surge adiante,
mas não é tudo.

Preciso esperar um pouco
mais para que se instale
antes de ir.

Sei da infinita e absoluta
forma de cruzar fronteiras.

Nenhuma face
nenhum dorso
nenhum colo de manhã
a irromper a vertigem.

Nada serve ao teu silêncio
senão a tua palavra.
Nenhuma dor por começar a ser.
Apenas o alaranjado de um
novo torpor.

Seja a tarde ou a manhã
a trazer a brisa,
as noites estarão a reparti-las
ao meio.

Saiba da cor o seu desenho,
como sei de mim
a tua luz.
29/08/2002 – 4h08


UNO

A abóbada do dia
te escuta.
Cercam-te tuas verdades
uma a uma
em torno de teu olhar
bárbaro.

Te moves sob o céu
de betume
a noite espraiada
e sem lua.

Vive o tempo e suas claridades,
dobram-se as horas enquanto
passam.
Velam, em suas certezas,
as noites todas,
sem nada que as sustente
ou as descubra.

A sombra se dilui na luz,
a bruma, no vento.
Sem caminhos que busquem,
findamos a terra,
circunferência,
tocados pela mão
do tempo.

30/08/2002 – 1h38


O JOGO

Sem que se movam as pedras
do jogo
esperam os cavalos
nos espaços bicolores.

Arqueia-se o bispo diante do rei
e a rainha passa.

Sem que me digas para onde
te moves, saberei teu trajeto?

Peão do rei, nada te detém.

Da torre, acenas.
Os arcos lançam flechas
sobre o campo de batalha.

Outra guerra começa.
Sem jogos: somente a ira.

30/08/2002 – 2h09



VERTIGEM

Ainda guardo do dia
as manchas
na toalha,
depois de tomado o café.
O rastro de pão,
traços de outras conversas,
ainda a lívida presença
que se instalou.
Ficam as marcas
das palavras no ouvido.
A mente turva imagens
e fechar os olhos
não basta.
Bastam os murmúrios
da água escorrendo
como se não houvesse
fim.
Passos em todos os cantos
da casa ecoam
invisíveis.
Mãos ainda impossíveis
tateiam a frágil
vertigem
do dia.

1/09/2002 – 15h59



RES TOTUM

Marco Antônio morreu
de paixão.
Julio César, traído.
Dos homens que conhecemos,
não há dois mais infelizes.
A sorte não anda aos pares.
Por vezes,
somos órfãos do destino.
E por mais que as moiras,
parcas e fúrias
nos alentem ao crepúsculo,
o oráculo
jamais nos revelará o futuro.
Apolo, belo,
amou todas as deusas.
Incansável como Zeus,
amou todas as mulheres.
O pomo da discórdia à mais bela.
Não há recíprocas – somente mitos.
Teu mito é maior que o barco de Atena,
onde Ulisses navegou
de volta à Ítaca.
Temos apenas o que nos é dado
e descartamos.
A vida renasce nas folhas,
nos frutos, nas plantas,
na seiva que desce pelo caule.
Raízes, tronco e galhos.
Onde termina tua busca?
No precipício de todas as horas,
vórtice, visgo de nácar, abóbada
ensimesmada
e plena de murmúrios.

2/09/2002 – 23h10



NUTRE FÁBULA

Nutre fábula
e febre
o verdor da
palavra
escavada
mista de eco
e silêncio.

Fui fábula.
Agora
ergue-me a voz
enquanto
palavra.

Torpor
dor antiga
repete a saga
dos números
dísticos elementos
lavrados mais além.

Pára e pousa.
A perfeição do pássaro
nas linhas de tua mão.

Neste século efêmero
nada te atormenta
ainda
senão tua própria
brevidade.

Lânguido mar
se me ergues
acima de tuas trevas,
que cavernas
ocultarão meu corpo?

Despe e veste
a vida de tuas
entranhas.

Todo corpo é palavra.

Rio, 7/09/2002 – 14h20


VERBO

Verbo.
Tens o primeiro
nome.

Varres de tua
penumbra
o sal da boca,
língua, visgo,
vãos.

Linhas, falsos
ventos,
vôos de Turner,
alfombras,
vazias mãos.

Cascalho
verde, húmus
de rio,
beira de paisagem,
mares internos,
terra por onde
passam
e voam pássaros.

Nódoas
sem termos
esquecido
os nomes.

Rio, 13/09/2002 – 00h23


TUDO

Tudo que vem de tua boca
é mel.

Tudo que desce pelo teu colo
é luz.

Teus poemas, cascos de patas
a tremeluzir na terra.

Teus beijos,
ecos e fauna, fome e alma,
lama dos dias
a cobrir teus pés.

15/09/2002 – 14h34



NUNCA

Nunca seremos
os primeiros.
Derradeiros pomos
seremos colocados
ao acaso
e secaremos ao sol
ao vento
à tempestade tardia.
Nunca teremos
tempo.
Seremos empurrados
além da premeditada
manhã
que aguarda
incessantemente
chegar.
Nunca seremos nós.
Serão sempre os
outros a viver
o que não vivemos
porque seremos
sempre os últimos
a despertar.
Nunca.
Eis a ventura
e a desventura
escolhida.

20/09/2002 – 1h56


BARBARIZE
A Jiddu, Flavio Nascimento e Dalmo Saraiva

Barbarize,
pelas barbas do profeta,
barbarize.
Não precisa pedir licença,
sinalize,
o dedo em riste,
barbarize.
Soe o gongo, a campainha,
aperte os botões
e apague a luz.
Tudo que é velho,
se renova,
tudo que é azul,
dissolve no ar.
Barbarize.
Pela primeira vez
soe o alarme.
Seja pelo que for,
fique intacto,
não se deixe enganar
outra vez.
Barbarize!

23/09/02 – 21h56 – Início da Primavera


TEMPLO

Porque te aquietas, és
ser brando.
Em ti verbera a luz,
mão única,
frágil concha
de tua frágil boca.

Ecoas, grito,
outras vestes
a cobrir-te o colo,
dunas em teus ombros.

Erigir um templo
onde só há
o viço.

27/09/2002 – 20h46


SEI
para Sergio Gerônimo

Sei que te amava
antes,
mesmo que não soubesse
de ti.
Te amava, impensadamente,
como pensa a árvore
e o vento a soprá-la.
Sei que te amava sempre,
porque antes não havia
nada.

Nem o tempo.

3/10/2002 – 21h35



NESGA

Começa o dia
em seu princípio
estreito, onde
nenhum precipício
se anuncia
e nada nos cobre
os olhos.

Estão aqui as cores
fartas
a lembrança dos frutos
a meia tarde sem fim.

Mesmo assim
passamos
e deixamos um rastro
de musgos.

A manhã termina sempre
onde a começo.

Temos o que não
dissemos
porque dizer não adiantaria
nada.
E, sem renunciar,
alimentamos os segredos.

5/10/2002 – 2h36




A CAÇA
A Rofran Fernandes, em memória

Movimenta-te
em teus círculos de
caça,
vida talhada em cunha,
andaimes parados,
vozes ocas
dentro da boca.

Escuta todos os sons
da paisagem,
dobra os dedos sobre
o papel novo
e esquece as horas
diluídas num acaso,
frêmito,
descrevendo linhas
de rostos e mãos.

Vicejam as folhas
onde foram depositadas,
cascos e pedras
de caminhos,
a ventar sobre planícies
sem retorno.

Assim é
o que nos resta
– realidade de espelho
sem o olhar.

A beleza esquecida,
mesmo sem ter
existido.

7/10/2002 – 2h15



PRESENÇA
Para Rosália Milsztajn, em seu aniversário

Eis a terra
onde seguem os descaminhos
erram os passos
sem destino anterior à história.

Resta
a primeira hora
mesmo antiga
porque te espera o instante
que te reconhece
e abandonas.

Erguem as mãos
os reis, santos e escravos,
a vida forjada
a via longa
calcinada em seus desvios.

Curvam-se as árvores
ao vento
deslocam-se as pedras
sozinhas
são templos vazios
e olhos parados.

Vive o horizonte de sua
curvatura.
Existe o homem e sua casa.
Vive somente à espera
de outro dia
de outra hora.

Ergue-se o monte
silente.
Esperamos.
O recomeço de tudo.

14/10/2002 – 00h57


INCÓLUME

Incompreensível
inaudível
invejável.

Como se pode ser
sem ser?

Embora a chama
chame
secam rios
à sua passagem.

Ritos
e ondas
em
movimento.

Nadar em direção
ao oceano.

Naufragar.

Erigir.

16/10/2002 – 15h25



NEM

Nem Salomé nem Jocasta
a arrancar o frio olhar
de mármore.
Nem Medusa nem Helena
a atrair os homens
em seu encalço.
Petrifica-me o nome,
vulcânica Pompéia
desvalida.
Nem musa nem pitonisa.
Só o oráculo de Delfos
a clamar ao Olimpo.

16/10/2002 – 18h22


O INCANSÁVEL

Das coisas breves,
o amor é a mais longa,
a mais enganadora
sensação de eternidade.
Sendo fugaz,
se instala
e faz-se pensar
contínuo,
implorando retorno.
O amor exige presença
por se sentir sempre
incompleto.
E mesmo que passe,
ainda restará a chama
de algum calor.

23/10/2002 – 11h30



ETERNIDADE

Em memória, somos eternos,
em memória sacralizamos o efêmero,
em memória, bendizemos a passagem do tempo,
renascemos na fração de segundo que nos é devolvida,
vida novamente entregue às nossas sensações.
novamente eu o beijo,
novamente o vejo como se o visse agora.
em memória, amo-o mais do que jamais poderia amá-lo
e assim tornamo-nos permanentes.

23/10/2002 –16h38



O GESTO

Tudo se resume ao último gesto.
O último olhar sobre o ombro,
virar-se para ver mais uma vez
a paisagem.
Tudo fica para o último instante.
Últimas palavras.
Último beijo.
E nunca sabemos
quando.

23/10/2002 – 22h41


A ONDA
100o. aniversário de Drummond

Verão
teus olhos brancos
sob o arco de sobrancelhas
vagas
todas as horas
de espera, de olhares
precisos
e gestos que não se bastam.

Restam
sementes de lírios,
égides
perfazendo orlas,
esculpindo a face do amado.

Serás
a mão a depositar
o símbolo,
a concha aberta ao céu
esculpindo
a onda.

Moverás o vértice
sobre tua face
e erguerás
a fatalidade do ser
ao te esperarem
além.

31/10/2002 – 00h52



EMUDECIDOS

Porque em amores
não somos eternos,

é a vida sempre
celebrada

em vãos perenes
de esperados dias,

como se tudo acontecesse
só uma vez.

Reentramos as mesmas
florestas, atravessamos

rios e arcos de pontes,
o musgo descendo

a pedra, a água
descendo o rio.

Vivemos como peixes
que não respiram,

asfixia de palavras
incontidas.

Como somos
impermanentes,

encontramo-nos
na liquidez dos dias,

a flutuar os rios,
na tormenta fluida

de escamas,
emudecidos.

4/11/2002 – 1h00




OUTRAS MANHÃS

Temos
nascimentos e vésperas

esperas
noturnos contornos

orvalhos diamantes
trêmulas flamas

chamas
interstícias

círculos de águas
em mais águas
profundas.

Verbos
nadadeiras de patos
em movimento.

Límpidas margens
quantas margens houver
adiante.

Descemos
bólidos rios

catamarãs
em travessias

e infinitos.

4/11/2002 – 12h15



DESPOJO
para Celso de Alencar

Meus despojos
guardo para esquecê-los.
Restam poucos de mim
para outro silêncio e trevas.
Passamos ontens
a esmo
e vive a tormenta seu desejo.
Fome de outra carne
esquecida.
Floresce, ainda que tímida,
a vida entre o breu.
Onde encontramos pastagens,
ficam as pedras erguidas
de um monumento
de adeus.

21/11/2002 – 16h52



O OLHAR
A Ricardo Ruiz, em seu aniversário.

Teu olhar basta.

Vê a folha
que te imita,
o fruto que te alimenta,
vê a luz que permeia
a árvore e o pássaro
que pousa nela.

Basta o olhar.

Em tua clave,
repousa o canto.

Em tua mão,
outro firmamento.

Deixa-te estar
eternamente farto,
à espera,
sem de nada precisar.

26/11/2002 – 1h18


MAIS
para Claudio

Por mais que me aproxime de ti
sempre restará um vácuo, um vazio
que nada ocupa.
Nem nós mesmos.

Olhos vertidos em vitrais sombrios
naves de igrejas alongadas
vértices de tua fome
saciada.

Nada fica.

Reconstruímos a vida, semeando-a
de novo.

És novo:
renascem em ti todas as manhãs
imaginadas.

6/12/2002 –– 12h00


OCEANO

Não serão os oceanos
prados que se movem sobre a terra
ocultando em sua mão úmida
o rastro de baleias e anêmonas?

Não serão as águas
longos mantos estendidos
acenando em despedida sobre os montes
cercando lírios, pomos de granito?

Não serão as vidas
águas vivas, laços que se fazem e se desfazem
largos braços acolhendo cestos cheios
dia que se repete e se recolhe?

Virão os homens, as crianças, as mulheres
e todos serão bem-vindos.

13/12/2002 – 13h51



TORVELINHO
para Christovam Jacques de Chevalier

Terás o sonho
minha mão intocada
óbulo facetado
nódoas virgens.

Ruminarás certezas
todas puras e vivas
natureza entremeada de fogos
nomes sussurrados no oráculo.

Nascerão as pétalas
de teu tronco e cobrirás o rosto
imóvel em sua tessitura acre
forjada sobre a pele dura.

Viveremos os meses
o tempo que nos restar de paisagem.
Essa lúdica forma, louco estorvo,
torvelinho de todas as magias
fragmentadas.

13/12/2002 – 14h09



MÓVEL

Move-te a lâmina
a voz da escuta
o lábio à espera
da fala, beijo tardio
fome atada ao gosto
mordida, cio.

Move-te a luz
tua casa habitada
veio cortante de folha
noz partida, cilindro
de cores
fonte de precipícios.

Ergue-te a noite
em tempo móvel
unido à fala
dor de gesto perdido.

Leva-te a mão
o laço rompido.

Tua voz, segredo.

13/12/2002– 3h40



GREENER
para Ricardo Rocha,
na véspera do Grande Concerto Barroco

São tuas mãos
a música.

Do silêncio, erguem-se
as vozes.

Calam-se.
Voltam ao negror.

Vêm, depois de tudo
sobre um pasto mais verde
que o paraíso.

13/12/2002 – 23h59



FEBRE

Meço a febre
e ausculto teu sono.

Lagos em teus olhos
famintos
movem-se como peixes.

Águas lambem tuas coxas
seixos rolam por tua cintura.

Horizontes de pedra
abertos sobre teus ombros
vertem as águas
de tuas entranhas.

Vertem como lâminas
afiadas
sobre cascos
de cavalos selvagens.

Insone
olhos semicerrados
te vejo.

15/12/2002 – 17h07


POEMA
Para Cristina Terra

Não estamos próximos
e não respiramos.
Fóssil incrustado na pedra,
aguardamos.

Luz, mais luz
e envelhecemos.

Os corais estreitam-se nas ondas,
vemos a espuma coalhar o horizonte
sem nuvens suspensas no ar.

Mergulhamos a folha na água
e as palavras jorram.

Cerro
os olhos para reter
o poema.

19/12/2002 – 00h24


LUZ

Como crianças, brincamos com tudo,
como se não tivesse importância, mas tem
para nós, que brincamos.

Descobrimos a luz do sol
todos os dias, porque nada dura mais
do que um dia.

Sejamos essas crianças que brincam,
com a inocência em tudo, para que
exista um mundo onde só a luz entre.

29/12/2002 – 18h28



NOVO

É por demais breve
o dia.
Deixemos de lado
o que nos resta
de poesia.
Por demais breve
a hora.
Não há memória
para tantos tormentos.
Nem felicidade.
Estar diante de si,
como um príncipe.
Nada senão o
novo.

31/12/2002 – 15h05



CALMA

Tenha
a calma descolorida
ao final da tarde,
a inútil febre tardia,
a voz, acalanto,
perdida.

Tenha
nas mãos seu nome,
a brevidade de ser
sem sê-lo,
exausto de si mesmo,
ainda.

Tenha de mim
a noite mais pálida,
a fímbria da manhã
entrelaçada
e a luz nos olhos,
visitada.

8/01/2003 – 15h38




SOMBRAS

Sombras deslizam
sobre teu colo
de âmbar.

Derrama-se a luz
sobre a pele
mais amada.

Há um círculo
em que te sustentas
imóvel.

E em torno dele
te dispões.

12/01/2003 – 18h03



MAR

E veio o mar,
moveram-se as águas
como em solfejo,
respirando as ondas as vagas
todas, móveis, tácitas,
em frêmito e brandas
e nada restou de suas curvas
mansas, águas por serem
longas, veio o mar
e cobriu a areia.

2/02/2003 – 00h10




ALVO

Te basta a dor.
Teu peito
coexistindo no presente
de teu corpo.

Te bastam as horas
para que vagues
de ti mesmo
e nunca retornes.

Bastas a mim.
Por te ter somente
ausente.

10/03/2003 – 1h04



HÁ DIAS QUE PASSAM INTEIROS

Há dias que passam inteiros,
despindo-nos os olhos de véus,
voltando-nos para janelas abertas sobre a paisagem
e, ao final da tarde, o silêncio ocupou os ocos das árvores,
susteve as pedras antes da queda,
deslizou os mares sobre o fundo dos oceanos
e nos deixou à beira da imensa noite que nos envolve.
Há dias que passam sem que seja dito
o que tanto esperamos.
Por isso passa, e estamos de novo à espera,
sempre que nos voltamos a ele,
toda vez que amanhecemos.

29/05/2003 – 2h58



O TERCEIRO

Porque fui o terceiro
de teus amores,
soergui a face ante a penumbra
ígnea, estagnada língua,
forma de encanto, senda,
vereda posta onde havia o ermo.
Assim, a passar o tempo
por teus claros vazios,
trouxeste-me cestos, horas
e discos d'água,
fomes abruptas de vorazes segredos,
nunca o ócio,
voz e vaga, ao deitar-me sobre a tarde
e me ouvias, ainda.

26/06/2003 – 4h35


BABEL MINHA
A Waly Salomão, em memória

O corpo vira cinza para que o fogo habite as páginas do livro.
Waly Salomão

Eu sei.
Já se foi o tempo
em que as ninfas azuis
se despregaram do lodo
e alçaram um vôo mais alto
que as copas das árvores.
Eu, que contenho todos os segredos
da terra dentro das conchas,
abri o chão para que tu te deitasses
pela última vez.
Misturo agora tua sombra
com o negror da noite
que encobre os cálices e as bordas
dos copos, para sorver mais uma vez
a tua seiva.
Lê em tuas mãos os derradeiros
versos que escreveste.
Ergue-te, poeta, para o brado de teus ancestrais.
Estás aqui abandonado por tua própria
essência: entre loas,
o arcano da morte te traz um renascimento
sem dor.
Babel minha,
desvela tua voz,
revela-nos a sorte.
Em tua bíblica túnica,
és o filho órfão de tua palavra.

Rio, 6/05/2003 – 7h59



CERTOS MISTÉRIOS

Certos mistérios são inaudíveis.
Calamos as árvores de seu sopro,

folha a folha emudecida
e nada se move por ser eterno.

Ouvimos sem nada ser dito.
Não há tempo.

Em tua sombra, apenas vivo.

7/07/2003 – 10h32



QUANDO A BANDA PASSOU
para Alice, de aniversário

Quando A Banda ganhou,
o tempo parou
e parou todo mundo pra ver:
quem estava à toa
quem namorava
quem sofria
ou contava as estrelas.
Nem a moça nem a rosa
nem ninguém se sentiu triste
e a meninada continuou a brincar.
O cansaço do velho passou,
a moça feia sentiu-se bela
feito Carolina na janela.
O homem sério sorriu,
o faroleiro calou
e a marcha alegre enfeitou toda a cidade.
Que desencanto doce lembrar
que A Banda passou.
Mas eu era menina
e não sabia que eu era
a lua.

22/07/2003 – 20h00